Sorriso Chulo

Hoje és musa
da escuridão
e de olhos pintados
invades a noite
com a boca vestida de cetim
beijando passos de seda
no teu caminho de lata.

Sei que amas essa
imagem misteriosa
que o preto dá à tua pele
e por isso
esta noite dele abusas
sem nunca te esqueceres
de salpicar
um qualquer brilho prateado
no teu generoso decote.

Julgas-te bela assim
quando te olhas ao espelho
maquilhada como uma boneca
e vais demarcando as tuas curvas
com tecidos transparentes
só para aguçar
algum apetite voraz
que te saiba devorar.
Então, irrompes
pela noite dentro
e ficas salivando discretamente,
por entre risos e copos
a intervalar a língua com os lábios
à procura do encaixe perfeito,
enquanto te arrastam
para dançar.

Esta noite
sei que o teu olhar
alugou estrelas ao céu
e que em alguma rua desta cidade
houve alguém que te viu
a querer comprar o mundo
com um sorriso chulo.
E aí o tens…
Deitado aos teus pés
e é como um reles prostituto
que a ti que se vende.

Daniela Pereira

Noite Salgada

Noite…

noite fria sem gelo nas pontas
tens orvalho nos olhos e não é manhã
tens rios que correm fugindo do mar
luas que se escondem por detrás das estrelas..

Viste o meu amor por aí a vaguear?

Dei-lhe tantos braços
que fiz dos abraços rotinas
dei-lhe tanta guarida
que fiz do pão..mel para a boca
que fiz do mel..uma cama densa

Noite…
Que conheces todos os amores que achei perdidos
que viste com que força entrei nas suas almas
porque me deixas fraca e só?
Porque me tiras um pedaço
se eu só tenho espaço para dois no peito?
Se me escavas mais fundo…não tens como cobrir de novo este buraco imundo

Noite.

que és minha amante
e minha mãe
Porque me deixas chorar com palavras vãs?
Porque levaste de mim o sorriso
e me deixaste na boca um lamento?

Noite…
que és minha e tua…
Diz-me..
Quando chega de novo o dia?

Daniela Pereira

Eterna Despedida

Conhecer as tensões não significa
que não sinta.
Sou eterno contigo, como sempre tenho sido,
mas não fico pertencente à gaveta
de um assunto esquecido,
nem à caneta que desenhou em palavras
o sentimento permanente
das coisas que nos demos
e do muito que vivemos.

Entende que é por isto
que fumo;
este cigarro que me traz momentos
da paz contrafeita,
que como a Pessoa, liberta,
no seu fumo os pensamentos,
no meu momento sensitivo,
e competente,
d’alma desperta!

Nunca te abandonei, mulher ideal,
pertencente a um ideal
que não abracei,
concernente ao social “ismo”
que nos cataloga e condena.
Existirás para mim sempre
num memoriado sismo
até ao Advento.
És a mulher-missão
a quem a minha mão
devolve a Esperança
sempre nesta sua semelhança
mais contrária
ao teu lamento.

Chora, mulher,
chora de novo, neste momento
outra vez repetido,
nesta dádiva à tua vida
que ganhou sentido
e que com este alento
é renascida!
Serei para sempre esta marca
no teu leito,
e vez após vez
tatuarei na chama do peito
a memória monarca
que te fez!

Oh mulher…

Assino assim este poema como uma despedida
e as lágrimas inevitáveis,
de sal,
molham-me a vida,
humedecem esta voz sentida
de um julgamento meu,
escoam a culpa própria do processo
natural

de ser eu…

Rui Diniz

Evolução Nocturna

Esta noite não cerrei os olhos e não vi escuridão.
Deixei-me ficar quieta no silêncio a desbastar pensamentos
e a sentir a noite evoluir.
Passei imagens num flashback acelerado
desnudando-as de incógnitas.
Ficaram despidas dos desperdícios.
Eram transparentes…
Penetrei-as numa sequência repetitiva de clarões de luz
disparados pela luminosidade do olhar iluminado enfraquecido.
Tirei fotocópias dos momentos para mais tarde recordar
porque não os queria esquecer.
À medida que a noite desabrochava
violei-os sem deixar marcas que os pudessem desfigurar.
Eram perfeitos visualizados pelos olhos da minha imperfeição.
Num gesto brusco, espalhei-os pelo tecto do meu quarto…
Olhei… reflecti… e ponderei os prós e os contras.
Depois empilhei-os em camadas agridoces no fundo da gaveta.

Daniela Pereira

Caixa de Comprimidos

Tenho uma caixa de comprimidos na mão;
devo tomá-los?
Ou talvez não?

Se bastar o momento para conseguir,
talvez assim…
eu de facto me deixe ir.
Não faço cá falta;
fica cá toda essa malta
por aí…
inexistente…
a sorrir… …

Que casa vazia esta!
A que o meu corpo habita
e o corpo
que a minha alma infesta!
Não é preciso mais drama…
Só uma cadela aquece esta cama
e traz ternura à mesma mão
que segura a caixa profana…

Não vos quero dar mais neste momento,
nem jamais me converter!…
sirvo-me agora de um lamento
e já só me falta morrer…
Que morte lenta e penosa
vivo por entre os anos!
Como pode minha marca ser saudosa
se meus pensamentos são insanos?!
Tenho mil demónios contidos!!
UMA LEGIÃO!!!!…

…e uma caixa de comprimidos;
devo tomá-los?
Ou talvez não?

Rui Diniz

Larguei-te no Mar

Larguei-te no mar hoje…
soltei as tuas cinzas de dentro de mim
e expus-te ao vento cantante;
ele levou-te mas nunca te espalhou.
Manteve-te na íntegra
a mulher que hoje é passado
e que inteira me renunciou.

Foi melhor assim
e não sobreviverá em mim qualquer mágoa,
mas libertando-te nesta água,
procurando de ti hoje o fim,
compreendo
que se o sol fura o cinzento do céu
só para te ver…
é porque alguma coisa entre nós
ficou por viver…

Rui Diniz

Pátio Gaivota

Apercebo-me que estou perto.
Um arrepio atravessa-me.
Há muitos anos não estou tão próximo
deste lugar incerto.
Saí de casa um menino,
procurando a lucidez
entre o sábio e o divino,
encontrando na viagem,
nitidez.
Ali está ela,
a casa do canto,
com a mesma porta…
e à volta dela
o mesmo encanto,
do perdido Pátio Gaivota…
Nos vasos, outras flores,
no ar, já sem o veneno
das passadas dores,
transpira um trapo
mais sereno…

A porta abre-se,
revela uma criança de sorriso ardente,
o mesmo sorriso ingénuo
agora de mim tão ausente!
É filha de alguém feliz!
Refugio a vergonha
por detrás de um cigarro,
e quando de lá dentro alguém diz
“Cuidado com algum carro!”…
a criança sonha!
O infante brinca indiferente,
alheio à minha tortura,
infligida pela lembrança
da negrura
desse Pátio Gaivota
do meu tempo de criança!
E este olhar pungente
o meu saber não enxota!
A criança passa correndo
e sou eu que vou lá,
brincando,
ardendo,
sonhando,
perdendo,
fumando,
esquecendo…
que a criança sofrendo,
afinal,
já lá não está.

Rui Diniz

Quando Eu Morrer

Quando eu morrer…

Morre o filósofo e o poeta,
morre o homem da caneta.

Morre o jovem e o idoso,
morre o pensante perigoso.

Morre o músico vacilante,
morre o nobre viajante.

Morre o intrépido cavaleiro,
morre o tímido prisioneiro.

Morre o charmoso galã,
morre o menino da mamã.

Morre o monstro condenado,
morre o mestre iluminado.

Morre um corpo que figura
esta Alma que perdura!

Morte!

A metáfora suprema,
a mudança de cena.

A destruição da evidência,
a afirmação da existência.

A sensação de liberdade,
a desilusão da saudade.

A podridão da biologia,
o alimento da maioria.

A promoção do lamento,
a suspensão do sofrimento,

O elemento indiferente,
o momento convergente!

Por isso,
quando eu morrer…

cantem Bécaud!
Inundem-se com a canção que vos dou
cheios da vida que vos compete:

“Quand Il est mort le poéte…”

Rui Diniz